sábado, 7 de junho de 2014

fragmento

(..) Ele retornou. Disse que está arrependido e que me quer de volta. Que o que ele teve pelo outro foi apenas uma admiração momentânea que tão logo se tornou inexpressiva. Botou a culpa no álcool. Da noite que passaram juntos recrudescidos pelo álcool. Mas já não era a primeira vez que isso acontecia. Disse-lhe, por qualquer um põe-se admirado porque gosta de se apaixonar. Não duvido que enquanto te fodem, você não pede para que te fodam com mais força até que goze e exprima toda a sua admiração num eu te amo efêmero. Dândi? Hedonista? Porque também já fui efêmero, entenderei a sua efemeridade, abrirei meus braços e o receberei novamente. E o amarei não como um traído, orgulhoso de seus princípios inflexíveis; o amarei simplesmente pelo ato do reencontro (...)

quarta-feira, 4 de junho de 2014

eu fico sendo você

Um dia uso os teus pertences
e fico íntimo de ti.
Fico sendo íntimo de mim
na trama dos teus lençóis
assim que tu te ausentes
logo que resplandeça a luz.

Tomo conta da tua casa.
Espano o pó dos bibelôs.
Os mais bonitos vão para o bolso.
Imagino que ficarão interessantes
na minha estante.
não, não é furto, é lembrança de turista.

Começo a fumar o teu cigarro
pra saber o gosto que tem na tua boca.
Terá o mesmo na minha?
Ou terei um pouco da tua boca na minha?
Ou terei minha boca transmutada na tua?

Para isso servem a escova de dente,
o fio dental usado e reutilizado por mim.
Tua camiseta do avesso lançada ao chão
com o cheiro de suor permanecido nas mangas.

Essa obsessão de narcíseo amor,
faz de mim imagem masturbatória
de te ser,
ainda que nas tuas aparas, nos teus restos
no teu pouco descartado.

terça-feira, 3 de junho de 2014

A sala fez-se encosta rochosa: era arrebentação

Xinguei-a: vida, sua filha da puta! Esmurrei o ar e repeti o impropério: vida, sua filha da puta! Como se xinga alguém eu xinguei a vida. Como se a vida fosse feita de alguma matéria tocável, um corpo lânguido recostado no sofá a lhe causar ódio, porque descansa, e você sofre. Abri novamente a boca e também, novamente esmurrei o ar. Ainda descontente, levantei-me da cadeira e me agigantei: Vida, sua filha da puta! Tinha agora os olhos às pupilas dilatadas de um morto, o coração disparado e arrítmico ardendo na aorta. A dor aguda no peito, a respiração rareada, uma pressão dos diabos: sabia que vazaria por todos os lados. Então abordei a existência. De tudo aquilo o que restou foi isto? Ter meu sangue vertido pelos ouvidos, narinas e outros orifícios sem meu consentimento? 


Estavam todos lá sobre o monte. Paisagem árida com poucos arbustos. O céu azul imperturbável de nuvens confirmava a terra crestada espocada de rochas; confirmava também, diferente do que se via nos filmes, que não cairia uma gota d’água em meu funeral. Tempo de seca e morte sob o esplender do sol. Por isso estavam todos no cume do monte. Num desespero festivo, soerguendo braços, dançavam o ritual, contatavam divindades. Puseram-me no centro, nu como a uma virgem ou outro animal qualquer. (novamente dentro do círculo da bruxa). Em mim surgiram chagas; talhos na pele gotejavam o sangue, a oferta. Embora entendesse o meu fim e devesse acordar ao sacrifício, fui tomado por uma bestialidade própria dos animais com chifre, dos anjos rebelados... vejam, gritou alguém que não pude identificar na minha agonia, é Baphomet corporificado aceitando a nossa oferta! Como num enxame, infestaram sobre o meu corpo, estrebucharam-no, estriparam-no e iam com os meus órgãos em suas mãos obter a benção.


Lá do alto, na encosta rochosa, você me perguntou: sabe o que o mar significa? Assenti que não com os olhos mirados no horizonte. O mar é o nosso inconsciente.

Então o mar rebentou na minha sala. Depois invadiu os outros cômodos. Água salgada soçobrando a vida construída. O que era feito de vazios, flutuava, dava-se ao fluxo da maré inventada; o que era maciço ganhava aspecto de embarcações há muito naufragadas colorindo espectros de luz o fundo e suas partículas em suspenção. Suspendia-me. Esvaziava-me as artérias, premido pelo desejo dos que querem ser encontrados, mas se lançam da encosta rochosa. A água inundava o meu corpo, e cada vez mais denso constrangia-me à submersão, à ancoragem, ao naufrágio, ao meu sufoco. Morreria ali. Nunca mais inteiro e reencontrado, preso entre os escombros, o meu corpo se decomporia limoso a mercê do movimento das águas.

o oco cheio de vazio

é que não posso ser porque não me pertenço não sou de mim mesmo: nem o corpo ou a fala nem o membro, nem a língua   nem o próprio gozo apree...