sábado, 25 de fevereiro de 2012

Vizinho tu

Sou o vizinho dele. Ouço o francês macarrônico copiado das músicas que ele ouve. Dói-me o coração de saber que não há dor no que ele reproduz. Apenas a nostalgia artística que muitas vezes procuro, mas, acabo desatando num choro descontrolado de quem sente a nostalgia que ainda não passou. 

Se ele também sofresse pelo o que eu sofro, bateria a sua porta, diria que há algo de errado conosco, e que deveríamos passar por isto juntos, como se fossemos um o analista do outro, fazendo associações de fugas, buscando novos refúgios. No entanto, tudo nele é de uma pertinência teatral. 

Quando o vejo pela manhã, descendo a escada para sua aula matinal, observo sua roupa e imagino qual personagem o encarnou durante o sono. Imagino até mesmo qual livro leu, o filme que assistiu ou o programa de entrevista que deixou ligado enquanto adormecia. E nada nele dói mais do que um dia. Deve ser por isso que às vezes o julgo como uma bichinha alheia a cumprimentos, às fomes do mundo, e aos diálogos inflamados dos grandes mestres da literatura. Outras, o julgo como um homem obstinado por seus deveres, travestido numa gravata negra, uma mala executiva de couro, apressado para ganhar muito dinheiro dizendo às pessoas que conquistou seu lugar no mundo. Tudo tão inconstante que gastaria todas as palavras para descrever todas as personas que compõem seu guarda roupa. Não que ele não os repita, mas sempre repete de forma única. 

Ontem, ele acenou da escada, estava com o seu habitual short-de-putinha-que-deu-a-noite-inteira-para-desconhecido. Não ouvi seus gemidos, porém, durante a madrugada, vi um homem meio gordo e atarraxado descer as escadas, sorria como apaixonado ou como homem que gozou, e manteve o gozo anestésico depois do sexo. Não sei quanto ao meu vizinho, parece ter feito sexo como uma necessidade habitual ao animal, tomou banho, apagou a luz e dormiu. 

Vontade de parar por aqui, porque pareço um futriqueiro, sem mais nada com que se preocupar na vida. Mas me intriga é o pensamento dele, mais ainda seu sentimento mutante, que não posso nem comparar com as estações do ano, porque estas mantêm sua regularidade. Parece que ele insiste em buscar a novidade, em abocanhar a vida de todos sem ser abocanhado, e isso me intriga a ponto de sentir raiva, de querer ser ele. 

De futriqueiro a invejoso em menos de poucos parágrafos. Consigo me superar quando se trata dele. Daqui a pouco, passo a lhe amar e o querer deitado comigo, fazendo amor comigo, estendendo toda nossa carência através do sono. 

Paro por aqui. Estou confuso. Lavarei a louça para me distrair.

Um comentário:

o oco cheio de vazio

é que não posso ser porque não me pertenço não sou de mim mesmo: nem o corpo ou a fala nem o membro, nem a língua   nem o próprio gozo apree...